Carta 052: Por que mexer no vespeiro de Olavo e René Guénon?
Anotações superficiais sobre uma questão picante
Preferiria eu continuar falando sobre existencialismo e o mundo moderno, mas sinto que é importante retomarmos a um tópico muito sensível hoje. Já falamos disso aqui. Digo que quero falar sobre o relacionamento entre Olavo de Carvalho e René Guénon.
Como alguns leitores devem saber, comento, apenas de passagem, sobre os problemas das objeções que o Professor Olavo fez a Guénon no final da sua vida, especialmente aquelas condensadas nas «Garras da esfinge». Nenhum dos meus comentários, nem mesmo aqueles do texto da newsletter linkado no parágrafo anterior, são aprofundados; nada teci de enfiada.
Também não será agora que o farei. Deixo apenas estas glossas marginais ao projeto Gotha, digo, Guénon.
Agora, por que isso? Uma vez um leitor me perguntou, lá no Instagram, quais eram as minhas maiores influências. Respondi que esse assunto não me interessava, porque uma vez que eu assimilo uma coisa, aquilo se torna meu, não mais do vetor de influência. Ato contínuo, uma pessoa fez uma pergunta muito interessante: Se é assim, por que estudar a influência do Guénon no Olavo?
Creio que é o seguinte: eu sou um homem vivo; assim, não sou objeto finalizado. Já o Olavo tem obra e vida finalizadas, de modo que ele é um objeto de estudo. Seu pensamento não pertence apenas à história da filosofia, mas também à disciplina da história das idéias. E é natural que os interessados no seu pensamento tentem rastrear o olho d’água do rio.
(Isto é, seria natural se os interessados do oficialato olavista fato fossem interessados no Professor Olavo de Carvalho, e não em fazer curso, brincar de public intellectual, de radialista, de cineasta, de assessor de político, etc., etc.)
De maneira que a contradição que eu identifico no que o Olavo diz nas «Garras da esfinge» e no decurso da sua obra, inclusive antes e depois do artigo, sobre Guénon, se torna um intrigante problema. Além disso, eu mesmo testemunhei ao-vivo e em primeira mão uma menção elogiosa do Olavo ao Guénon após a publicação do texto rodado na falecida revista Verbum. Em 9 de julho de 2019, numa chamada por Skype, Olavo e eu conversamos por mais de uma hora sobre, entre outras coisas, René Guénon. Ao saber que na época eu cursava Jornalismo ao mesmo tempo em que lia, àquela altura, A Crise do Mundo Moderno, ele me disse enfaticamente:
—É isso que você tem que estar estudando!
A frase pode ser tomada como quiser. Fato é que o Olavo nunca condenou e nem se desinteressou por Guénon.
Por certo, cabe aqui fazer uma distinção. De um lado, há o problema da tese do Olavo sobre Guénon ser o gestor do projeto de islamização da Europa. Não dou nenhum crédito a essa tese que, como já demonstrei noutra oportunidade, não se sustenta nem pelos critérios da ciência histórica envergados pelo Olavo. Do outro, há o mistério da influência entre Olavo e Guénon, que considero suficientemente interessante para ser estudada, especialmente àqueles que começam a rezar o Credo assim que vêem o nome de René Guénon num texto qualquer.
Na aula do Curso On-line de Filosofia (COF) em que lê o capítulo dedicado ao autor francês do que seria «A Marcha dos Abismos», um dos livros que deixou por fazer na altura do seu passamento, Olavo diz que é uma vergonha a sabedoria simbólica do Cristianismo precisar ser recuperada por um muçulmano.
Mas as influências de Guénon são mais fundas que isso. Desde há algum tempo venho apanhando algumas para incluir num estudo que será mais proveitoso dentro da academia. É seguro dizer que boa parte dos preceitos filosóficos do Olavo partem ou são influenciados pela escola tradoperenialista em geral e pelo Guénon em particular. A importância do rito e da sua modulação dentro da consciência humana (chegando ao ponto, no Jardim das Aflições —o livro, não a aula em HD que dizem que é filme— dele falar que um dos «pecados» da Igreja de Roma foi não ter permitido uma «plasticidade» maior de ritos no Ocidente, o que resultou numa «mundanização do culto, o rebaixamento da moral cristã a um receituário de exterioridades tão opressivo e falso quanto o moralismo estatal romano, a cristalização progressiva da doutrina num formalismo lógico-jurídico deprimente e, por via de conseqüência, a politização completa da religião na época pós-renascentista», O Jardim das Aflições, cap. VIII, §25); enfim, a importância do rito Olavo atribui a causar uma impressão. A frase, diz o Olavo, vem de Aristóteles, apesar dele não dar a referência. Não sei se por assimilação ou se por recurso tático. O fato é que a fonte mais popular (quiçá a única) dessa frase é A Tradição Hermética de Julius Evola, onde, aí sim, descobrimos que a fonte é secundária: a citação vem do Dio de Sinésio.
Outra frase famosa de Olavo, que também parece ser de extração aristotélica, é: «A palavra cão não morde.» Bem, essa frase tem mais pai do que sei lá o quê, mas ela efetivamente pode ser encontrada no guénonianíssimo Signes, symboles et mythes de Luc Benoist, também autor do panfleto guénoniano L’Ésoterisme.
Algumas das leituras fundamentais do Olavo, como As Forças Secretas da Revolução, vêm de Guénon. Por exemplo, esse mesmo livro fôra resenhado pelo homem de Blois na edição de outubro de 1930 da Études traditionnelles. Mas, claro, isso é ou pode ser circunstancial. O que não é circunstancial é que o caráter essencialmente otimista da obra de Olavo não passe pela influência do otimismo discreto de René Guénon. Segundo este, nada que acontece no mundo não acontece com vista para a retomada do seu equilíbrio. Uma das suas frases mais famosas, aliás, é uma denúncia desse otimismo:
Já falamos como esses dois pontos de vista, «benéfico» e «maléfico», podem ser de algum modo simétricos; porém é fácil de entender que não é esse o caso, e que o segundo não exprime nada senão algo transitório e instável, enquanto que apenas o primeiro possui um caráter permanente e definitivo, de modo que o aspecto «benéfico» não pode senão ser aquele prevalecente no fim das contas, enquanto que o «maléfico» se dissolve inteiramente, porque, no fundo, não era mais do que uma ilusão inerente à «separabilidade». (Le Règne de la quantité et les signes des temps, cap. XL)
(Percebo, de passagem, que a imaterialidade do «maléfico», tal como descrito por Guénon, é como o Olavo descreve a dúvida em Descartes: «[A] dúvida não [é] propriamente um “estado” — uma posição estática na qual eu pudesse permanecer, como se permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. Era uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-me num dos termos da alternativa sem que o outro viesse disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita da sua coexistência antagônica e de nada mais.» Visões de Descartes, cap. II)
De maneira ainda mais forte, outra frase famosa de Guénon também é um testemunho do otimismo intrínseco a esse autor: «Aqueles que possam se tentar a ceder ante o desespero devem perceber que nada feito nesta ordem [do ser] pode se perder; que a confusão, o erro e a escuridão não podem triunfar senão de modo superficial e efêmero, que todos os desequilíbrios parciais e transitórios contribuem para o equilíbrio maior do todo…» (La Crise du monde moderne, cap. IX)
O que se resume na frase otimista de Olavo de Carvalho: «Nada que acontece pode desacontecer.»
Estas anotações podem continuar outro dia. Deixo apenas a pergunta: Por que não mexer no vespeiro se a origem das idéias é tão profunda?
Os Paralamas do Sucesso iam tentar tocar na capital…