Carta 021: Problemas felinos: Sobre «As garras da esfinge», de Olavo de Carvalho
É hora da esfinge beber água (com uma breve consideração sobre truezões intelectuais)
«As garras da esfinge» foi publicado nos dois primeiros e únicos números da revista Verbum, voltada para o público católico e conservador do Brasil, em 2016. É provavelmente um texto capital sobre a recepção da obra de René Guénon em nosso país. E é provavelmente um texto muito ruim para quem quer entender o pensamento do francês.
No texto, Olavo de Carvalho demonstra como a obra de Guénon tem um elemento «escuso», um alçapão por baixo da camada perceptível disposta nas suas publicações. Esse elemento é, na realidade, muito simples: a obra de Guénon são as linhas gerais do projeto de islamização do Ocidente.
Por causa disso, por causa do que se diz nas «Garras da esfinge», parte do público brasileiro entende que Guénon é o mais perigoso dos autores. E o pior é que ele mesmo dá pista dessa faceta mistificadora e embaidora da sua obra: afinal, a esfinge do título do artigo de Olavo é o próprio Guénon, que assim assinava muitos textos no início da sua carreira.
A questão, porém, é a seguinte: Muita gente leu e ainda lê «As garras da esfinge», mas pouca gente o estudou. Será que Olavo estava certo em dizer que Guénon faz parte dum projeto de islamização? Será que, graças ao seu poder de encantamento, quem se põe a ler Guénon está entrando num labirinto perigoso, do qual talvez só saia quando já estiver gritando «Allahu Akbar!»?
Para tratar dessa questão, eu usarei uma metodologia muito simples, mas que considero muito eficiente: analisarei brevemente os argumentos dados por Olavo de Carvalho usando um critério de análise textual e documental que privilegia a intuição acerca do nosso objeto de estudo (a pessoa de René Guénon) baseado nos testemunhos do próprio Guénon acerca de si mesmo, num procedimento chamado princípio da testemunha qualificada.
Este princípio é do próprio Olavo de Carvalho, tal como dado no texto «O problema do método nas ciências humanas», apostila do Curso Online de Filosofia (COF).
Junto a esse método interpretativo — que julgará um eventual desejo ou inclinação islamizante de Guénon em suas obras —, pretendo lançar mão dum outro critério avaliativo: se Guénon se enquadra como um agente político segundo os critérios da boa filosofia política. Esses critérios são os que Olavo assinala na sua réplica no debate com Aleksandr Dugin.
Quantas garras a esfinge tem?
Nas «Garras da esfinge», Olavo fala que há dois projetos de universalização da religião. Ambos são «sincréticos» em certa medida. Um é aquele conduzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) sob a batuta do United Religions Initiative (URI). Esse projeto, do qual vemos em público apenas uma parte, é o do ecumenismo biônico, da religião sem dogmas, em que tudo se converge numa única manifestação de paz e harmonia. Grosso modo, a URI estará efetivada quando todo mundo puder dizer que é «espiritual sem ser religioso».
O segundo tipo de universalismo ecumênico é o de tipo intelectualizado próprio do tradicionalismo e/ou perenialismo (abro mão de fazer distinção entre os dois neste texto). Olavo:
Em contraste com a mixórdia sincretística da “Nova Era”, temos aqui um universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente e ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza os pontos comuns entre as várias cosmovisões espirituais, mas dá a razão e fundamento da sua diversidade […]. Do ponto de vista do buscador comum que, proveniente dos meios revolucionários, modernistas e ateísticos, é alertado para a importância dos temas “espirituais” e, após uma ilusão temporária com a “Nova Era”, se desilude com a sua superficialidade e sai em busca de alimento mais nutritivo, a passagem ao tradicionalismo de Guénon e Schuon é um upgrade intelectual formidável, um impacto desaculturante, quase uma transfiguração interior que repentinamente o isolará do ambiente mental em torno, marcado a um tempo pelo descrédito das religiões e pela vulgaridade sem fim do ocultismo onipresente, e o deixará sozinho, face a face com a sua consciência.
É precisamente esse impacto, e a eventual adesão ante o deslumbre intelectual do perenialismo que faz parte da teia mortal traçada por Guénon.
Só que esse projeto em si mesmo faz parte da «mentalidade revolucionária» que Olavo passou anos a denunciar. Porque o perenialismo só faz efeito uma vez que o Ocidente seja descreditado, e que a sua base cultural, a Igreja Católica, seja solapada como uma instituição em necessidade de renovação. Convenientemente, a Igreja, de fato, é descreditada no pensamento de Guénon como uma instituição meramente agregadora; um adorno exterior, uma fonte de comunhão do povo, sem maior significado intelectual e espiritual.
Nesse sentido, Guénon, aos olhos de Olavo, é um inimigo do Ocidente e partilha dos mesmos objetivos dos agentes dos impérios globais.
Vamos ver, exatamente, o que o Olavo diz.
Primeiro. Olavo afirma que Guénon identifica nas religiões do mundo o aspecto exotérico e esotérico. Essa distinção se dá de maneira mais clara no Islam, onde há a sharīʿah (a lei) e a tariqa (o caminho). No Ocidente, essa distinção acontece com o Catolicismo, que corresponde à lei, ao exoterismo (o ensinamento externo), e às sociedades iniciáticas como a Maçonaria e o Companheirismo.
Segundo. Surge uma oposição quando Frithjof Schuon confronta Guénon diretamente, afirmando que os sacramentos da Igreja Católica têm valor iniciático, sendo ela, portanto, uma organização esotérica de pleno direito.
Terceiro. Guénon se opõe à tese de Schuon com um escândalo injustificado. «[P]ublicada a opinião de Schuon a respeito, Guénon reagiu com indignação e fúria, chegando a romper relações com o seu discípulo e continuador.» Como parte da resposta indignada, propôs a tese de que o Catolicismo começou como uma religião esotérica e depois se perdeu, com a transição rumo ao exoterismo vulgarizante concluída por volta dos tempos do Concílio de Nicéia (ano 325).
Olavo repete reiteradamente que essa «teimosia» em Guénon de não acatar o aspecto esotérico da iniciação cristã, mais a reação despropositada ante o texto de Schuon revela qualquer coisa de espúria. É preciso enfatizar o quão esquisita a proposta da exoterização progressiva da Igreja parece a Olavo: «Não podendo falar claro, apelou a uma hipótese absurda e tentou reduzir o interlocutor ao silêncio mediante uma exibição de autoridade, que Schuon educadamente rejeitou.»
E conclui com esta reflexão:
Qual a razão pela qual Guénon teria escolhido enquadrar à força todas as tradições numa dupla de conceitos que não se aplicava apropriadamente a nenhuma delas exceto o islamismo em particular? Por que esse homem, tão criterioso em tudo o mais, se permitiu tamanha arbitrariedade, colocando-se assim numa posição vulnerável que se viu posta em risco tão logo Schuon levantou a questão das iniciações sacramentais? Quase com certeza teve, para fazê-lo, motivos que, ao menos naquele momento, não podiam ser discutidos abertamente.
Guénon visto de perto
Segundo a filosofia política de Olavo de Carvalho, um agente político, «além de tentar produzir certas ações por meio do seu discurso», também «está investido de planos globais e meios de ação em escala imperial». É claro que, nesse ponto específico, o Olavo estava se comparando a Aleksandr Dugin; com Olavo trabalhando desde sua quinta na Virgínia, sobrevivendo dos próprios livros e cursos, enquanto Dugin era, na época, um próspero professor universitário com trânsito no Kremlin.
Circunstância não muito diferente é a de Guénon, falando desde seu sobrado na Rua Nawwal, 4, em Dokki, Gizé, sobrevivendo das suas contribuições à revista Études traditionnelles e dos royalties de seus livros. De já, podemos tirar parte do andaime argumentativo de que Guénon possa ser considerado um agente político.
Outra coisa que é necessária a Guénon seria fazer parte ou dirigir uma organização capaz de ser uma agente histórica. Segundo Olavo, os agentes históricos são as grandes religiões universais, as organizações iniciáticas e esotéricas, dinastias, movimentos revolucionários e agentes espirituais.
Claro está que Guénon, sendo um sufi e um muçulmano, cumpre duas dessas condições. Mas o Olavo e eu também cumprimos, sendo católicos. Portanto, a adesão a um agente histórico não é suficiente para qualificar alguém como agente político. Seria preciso investigar suas conexões e sua função no funcionamento desse agente histórico.
Para isso, Olavo nos oferece a associação com o shaykh Elīsh el-Kebīr (1845–1922). Olavo argumenta que Guénon recebia de longe instruções das autoridades islâmicas, que lhe diziam o que fazer. O shaikh el-Kebīr seria a principal dessas autoridades. Tanto que, para selar sua fidelidade ao projeto islâmico, Guénon também teria se casado com a filha dele.
Aqui entramos num problema metodológico, onde apanhamos Olavo em aparente contradição consigo mesmo:
Se estivermos estudando, por exemplo, a vida de um personagem célebre, somente os dados mais externos da sua biografia poderão ser confirmados pelo testemunho do público. Para informações mais e dentro, teremos de recorrer a amigos ou familiares do biografado. E sobre seus pensamentos íntimos não teremos outra testemunha senão ele próprio.
Acontece que nós temos como confirmar um dado externo, de testemunho público: com quem Guénon se casou. Sua esposa (no caso, a segunda esposa; a primeira mulher de Guénon morrera em janeiro de 1928) chamava-se Fatma Hanem, filha de Muhammad Ibrahim, um comerciante de certas posses. Sabe-se que os dois se encontraram pela primeira vez na mesquita de Al-Hussein, no bairro de El-Gamaleya.
Se existe alguma conexão estranha entre um projeto de longo prazo e Guénon é que, no Cairo, Guénon foi integrado à tariqa Shādhiliyya, a mesma que Elīsh El-Kebīr fazia parte. Mas seria impossível que El-Kebīr estivesse dirigindo suas ações; apenas desde além-túmulo, dado que morrera em 1922. Também não é possível dizer que Guénon foi para o Cairo sob as ordens de autoridades islâmicas, porque também é de conhecimento público — um dado externo da sua biografia — como ele foi parar lá: em fins de 1929, Guénon conhece Mary Shillito, uma ricaça viúva que se apaixonou pelo escritor. Após uma temporada na Alsácia e no Château des Avenières, Shillito decide montar uma editora para reeditar as obras de Guénon que estavam fora de catálogo. A empreitada também traduziria material árabe para o público francês. Mas uma vez chegados ao Cairo, Guénon e Shillito brigaram e ela o abandonou no Egito. Quando André Préau, amigo de Guénon chega ao Cairo, suspeitando de que o grande crítico do mundo moderno está a viver mal, o descobre subnutrido, com menos de 100 francos para sobreviver, num muquifo cujo aluguel mal conseguia pagar. Guénon ainda entreteve a possibilidade de voltar para a França três vezes: uma em setembro de 1930, depois em 15 de outubro e mais uma no final do inverno de 1931. Em carta a Patrice Genty, já demonstra resignação. Talvez até satisfação. «Decididamente, não conseguirei sair daqui antes do inverno, a menos que apareça algum imprevisto; lamento-o porque estarei por muito tempo impedido de rever meus amigos, mas, visto de outro modo, é melhor assim.» (Carta a Patrice Genty, 18 out. 1930)
So much for «financiamentos dos meios de ação».
Olavo também assinala que não é certo dizer que Guénon se converteu ao Islam em 1930, pois já era membro regular de uma tariqa pelo menos desde os vinte e um anos, o que basta para mostrar que foi longamente preparado para a missão dificílima que iria desempenhar. Há um erro histórico aqui: a «primeira» iniciação de Guénon no Islam foi em 1912 (quando ele tinha de vinte e cinco para vinte e seis anos), por Ivan Aguéli, muḳaddam (representante) de Elīsh El-Kebīr.
Já que citei o nome de Aguéli, faço um reparo. Aguéli encaixa-se muito mais nos parâmetros da agência política olaviana do que Guénon. Ele foi o primeiro europeu a ter um braço legítimo duma tariqa — a Shādhiliyya — fundado no Ocidente, era amigo e patrocinado por reis e famílias reais, além de ter uma rede de conexões que ia de Barcelona à Turquia e foi o inventor do termo «islamofobia». Se alguém precisa ser investigado como islamizante, mais sentido faria o alvo fosse ele.
Até agora citei apenas fatos biográficos, «contingentes» que Olavo descaracteriza quando não simplesmente erra. O ideal agora seria citar as posições de Guénon, de modo que cumpramos a condição do entendimento intuitivo do próprio agente, Guénon, seguindo os processos da testemunha qualificada como Olavo recomenda no «Problema do método nas ciências humanas».
Só que não podemos fazer isso. Por quê? Porque Olavo não cita Guénon textualmente em nenhum momento do texto. Nem por meio de paráfrases. Nas vinte e nove notas do texto, encontramos apenas duas referências a Guénon, mas são apenas as informações de publicação de Oriente & Ocidente e de Símbolos da Ciência Sagrada.
Mas com base no que demonstrei até agora, considero muito difícil crer em boa fé na hipótese de que Guénon pudesse ter associações com algo similar à Organização (The Syndicate) à qual Olavo faz referência (e expõe de maneira exemplar) no debate com Aleksandr Dugin. A tese falha na metodologia do próprio Olavo.
Guénon versus Schuon
Apesar de não ser possível conferir os usos que Olavo de Carvalho fez do pensamento guénoniano, porque ele simplesmente não fez, é possível avaliar o modo como ele expõe a briga entre Schuon e Guénon.
Como visto lá atrás, Olavo pinta contenda entre os dois como uma discussão entre amigos frustrada pela ira de Guénon porque Schuon, sem querer, esbarrou nos planos secretos do primeiro.
É inexplicável que Olavo possa escrever isso a sério, porque o duelo dos dois é público, se dando nas páginas da Études traditionnelles. Ela vinha se desenvolvendo desde o final da II Guerra Mundial, quando se descobriu que Schuon havia relaxado a observância ortodoxa da sua tariqa na Lausana. Os membros não mais mantinham jejum no Ramaḍān e nem faziam as abluções antes dos ritos. Pouco a pouco, Schuon não insistia mais sequer na necessidade de conversão para o Islam como postulado ao ingresso à sua organização.
Guénon tentou remediar a situação com alguns textos: «Nécessité de l’exotérisme traditionnel» e «A propos du rattachement initiatique». Quando começou a ficar claro que Schuon estava fazendo o papel de líder espiritual absoluto, publicou mais um: «Vraies et faux instructeurs spirituels».
É nessa atmosfera de disputa que Schuon publica «Mystères christiques», sobre a validade das iniciações cristãs. E cita Guénon nominalmente:
É, por consegüinte, legítimo não fazer constar a Igreja entre as «organizações iniciáticas» propriamente ditas que podem subsistir no Ocidente, tais como o companheirismo e a maçonaria, e que não têm, evidentemente, nenhuma característica religiosa. Sua decadência não se devem a aplicações [erradas] ou adaptações. Quanto aos ritos cristãos, não seria ilegítimo os enquadrar como esotéricos, porque eles o são e mantêm-se assim desde há muito; mas essa aplicação exotérica pressupõe que os ritos se prestam a isso por sua própria natureza, mas sabemos que o Cristianismo é em realidade essencialmente um «caminho da Graça». — René Guénon mostrou essa característica excepcional do Cristianismo — sem querer explicá-lo — ao dizer que os «sacramentos» não têm em outro lugar uma equivalência exata. (Frithjof Schuon, «Mystères christiques», in Patrick Laude e Jean-Baptiste Aymard, orgs., Les Dossiers H. Frithjof Schuon, Lausanne, L’Age d’Homme, 2002, p. 433, nota 2)
Se essa argumentação do artigo estivesse correta, boa parte da obra guénoniana cairia por terra. Primeiro, em aspecto geral, a necessidade de Guénon de encontrar no Cristianismo organizações equivalentes às turuq no Ocidente se tornaria desnecessária, já que a própria instituição religiosa dessa religião do planeta seria em si mesma esotérica, como é o caso no mundo hindu. Segundo, o esforço de Guénon de reconciliar a maçonaria com o Cristianismo seria inteiramente desnecessário. Isso também implicaria na derrubada dum outro trabalho: a de uma loja maçônica de observância guénoniana. Sob a orientação de três alunos de Guénon (Marcel Clavelle/Jean Reyor, Roger Maridort et Denys Roman), a loja, fundada em 1947 e batizada de La Grande Triade, em homenagem a um livro do mestre lançado no ano precedente, intencionava ressuscitar na maçonaria o espírito tradicional. Para fazê-lo, os três iniciados procuraram afiliar a loja ao Grande Oriente da França (Grande Loge de France) e adotaram o Rito Escocês Antigo e Aceito.
Guénon, assim, tinha mais do que razão em tentar se proteger dos ataques de Schuon. Imagino também que não quisesse ser responsabilizado por ter posto em circulação Schuon, que agora vinha fazendo um papel sincrético totalmente contrário às suas visões religiosas. Deste modo, bem antes de ser um «uma exibição de autoridade», a reação de Guénon é a reação dum intelectual que se encontra diante dum opositor. E dum opositor verdadeiramente inclinado ao poder. Depois que Guénon cortou relações consigo, Schuon «mestre espiritual de todo o Ocidente, fazendo saber que organizações ocidentais com as quais podia ter relação, notadamente a Grande Triade, deveriam se submeter à [sua] autoridade». (Jean Reyor [?], «Affaire Schuon. La “Religio perrenis” [sic] et ses dérives», s/d, p. 64)
A exoterização do Cristianismo
Um último tópico a ser analisado é a da hipótese aparentemente absurda que Guénon propõe como resposta ao texto de Schuon de que o Cristianismo se exoterizara.
Olavo é categórico sobre a impossibilidade disso ser verdade. Afinal de contas, o Cristianismo nasceu público; Jesus pregava às massas, e mesmo suas parábolas eram ditas a todos, mesmo que seu significado não fosse compreendido pela maioria dos ouvintes. «[N]ão há traços de nenhuma organização esotérica cristã nos primeiros dez séculos da Igreja. Em segundo lugar, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou taxativamente: “Nada ensinei em segredo.”»
É verdade que Guénon, no seu texto-resposta, avança essa tese. Ele diz:
Seria provavelmente impossível dar uma data precisa à mudança que fez do Cristianismo uma religião no sentido próprio da palavra, uma forma tradicional que se dirige a todos indistintamente. [… V]erdades de ordem mais propriamente esotérica, que estão em sua natureza fora do alcance da maioria, não podem ser apresentadas senão como «mistérios» no sentido mais vulgar que essa palavra possui. (René Guénon, «Christianisme et Initiation», in Aperçus sur l’ésoterisme chrétien, Paris, Études Traditionnelles, 1954, pp. 14, 15)
Só que essa tese não é nenhuma novidade nem no pensamento guénoniano e nem na intelectualidade mundial.
Guénon inicialmente pensa, sim, que a Igreja pode ser revitalizada. «Por que não nos contentarmos, sem procurar nada mais distante, em dar ao Catolicismo a preeminência que tinha [na Idade Média], reconstruir de uma forma apropriada a antiga “cristandade” […]?» ele se pergunta (Orient & Occident, 1924). Essa forma apropriada é a divisão entre esoterismo e exoterismo. De fato, Olavo está correto nesse ponto.
Mas só que Guénon abre mão da Igreja, privando-a de qualquer importância.
O que eu disse em Oriente & Ocidente sobre o possível papel da Igreja Católica (como representante duma forma tradicional ocidental, por servir de base a certas realizações, como aquelas que ocorreram na Idade Média), devo dizer que não tive nunca ilusões sobre o que poderia acontecer de fato nas circunstâncias atuais; mas o que eu disse o fiz apenas para que não dissessem que eu negligenciei quaisquer possibilidades, mesmo que apenas teóricas, ou que não as levei em conta. (Carta a Roger Maridort, 29 de abril de 1930)
E também isto:
Eu também estou cada vez mais convencido de que as formas do Cristianismo, como estão ora constituídas, são incapazes de prover um apoio efetivo à restauração do espírito tradicional. Anteriormente eu contemplei esse apoio principalmente para que não me repreendessem por ter negligenciado alguma possibilidade.
Esta segunda carta foi remetida a Frithjof Schuon em dezembro de 1931.
Agora, não foi apenas Guénon quem mudou de opinião. Foi o próprio Olavo quem também mudou. Porque a «absurdidade» da hipótese do Cristianismo ter se exoterizado é um dos postulados teóricos do mais completo dos seus livros: O Jardim das Aflições (1995).
René Guénon, que sempre deve ser ouvido nessas matérias, explica o fenômeno dizendo que o cristianismo não tinha, originariamente, o espírito de uma lei religiosa, no sentido judaico ou islâmico de uma regra para a ordenação do mundo, mas o de um esoterismo, de um caminho puramente interior: “Meu reino não é deste mundo”. A exoterização do cristianismo, sua transformação numa lei religiosa para o conjunto da sociedade, teria sido causada por circunstâncias externas: a decadência da religião romana e do judaísmo deixavam o mundo greco-romano praticamente sem qualquer lei religiosa — e o cristianismo, mesmo a contragosto, mesmo ao preço de trair em parte sua vocação interiorizante, teve de preencher providencialmente uma lacuna que ameaçava alargar-se num abismo e engolfar a civilização. (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil, 3.ª ed., Campinas, VIDE Editorial, 2015, pp. 253–254, grifos meus)
Disso, Olavo depreende a origem da conjugação da autoridade espiritual com o poder temporal na Igreja ao longo dos séculos. Com a queda de Roma, a Igreja fica órfã do seu braço armado e passa a se imiscuir nos assuntos mundanos, seculares, políticos. Esse exemplo será tomado pelas potestades, que tentarão elas mesmas criar seus braços espirituais enquanto tentam destruir o Catolicismo criando a versão histórico-política do conflito entre Leviatã e Behemot.
Se Olavo abriu mão dessa tese, O Jardim das Aflições perde sua base teórica.
E, como eu disse, a exoterização do Cristianismo não é uma novidade guénoniana. Ernest Renan, na Histoire des origines du Christianisme (8 vols., 1863–1881), havia afirmado que o Cristianismo se consiste numa comunhão social exterior. Nietzsche havia dito que a mensagem paulina matou a religião dificílima que Jesus havia criado. Ambos os autores eram conhecidos de Guénon e tinham grande circulação na França (Renan era um best-seller no estrito senso da palavra).
Enfim…
Este texto ficou mais longo do que supus que ia ficar. Eu não o escrevi para tripudiar o Olavo, mas sim para pôr em prática uma metodologia analítica que ele mesmo utilizava e que eu aprendi para clarear sua obra dum erro que considero capital.
Esse é o dever do intelectual e é assim que se lida com o pensamento de um grande pensador. Há muitos que dizem admirar e defender o trabalho de Olavo de Carvalho. Se isso fosse verdade, mais textos como o que você acabou de ler existiriam; se realmente tivesse pessoas interessadas em debater, expandir, rever, corrigir, compreender, sintetizar, e interpretar seu pensamento, esse tópico seria quiçá motivo de congresso com atas e anais produzidos.
É assim que se faz um meio intelectual. Essa é mais uma lição do Olavo. Chega a ser perturbador que o editor da VIDE escreva que «[p]assar horas “denunciando o problema”, como se a sua crítica fosse “abrir os olhos” das pessoas, é só — seja sincero — alimentar ressentimento.» Perturbador porque (1) Olavo de Carvalho passou três décadas denunciando o problema e abrindo os olhos do Brasil sobre a carestia da inteligência brasileira e (2) é uma acusação que Dugin faz contra ele exatamente por denunciar os seus erros. E se hoje há uma VIDE que precisa de editor é porque Olavo de Carvalho passou três décadas denunciando o problema e abrindo os olhos dos outros.
Espero que isso tudo — a parte sobre os erros das «Garras da esfinge» e a parte da necessidade de debater a obra intelectual de um grande pensador — seja de serventia.
Muito bom.
E aquela suposta citação em que o Guenon teria dito que "islamizaria" a europa é verdadeira ou foi mais um erro do professor Olavo?