Uma das coisas mais interessantes do mundo é que se você perguntasse a René Guénon se ele era gnóstico, sua resposta seria provavelmente: Não.
Mas como pode ser isso? Certamente que em termos brasileiros, Guénon será definitivamente um gnóstico. Essa foi, aliás, a grande acusação contra Olavo de Carvalho ao longo dos anos. E cito Orlando Fedeli textualmente: «Qual seria a religião exotérica de Olavo? Da esotérica, já temos a prova confessa: ele é gnóstico.» Há também aquele triste artigo de Carlos Ramalhete, comentado aqui, onde se lê: «Quando o saudoso Orlando Fedeli assentou contra Olavo sua metralhadora giratória, acusando-o de gnóstico, escrevi àquele que efetivamente o Olavo era (cito literalmente) “um gnóstico de quatro costados”».
Acho que do ponto de vista da religião católica, não há o que discutir. Uma consulta rápida a um dicionário católico autorizado, pré-conciliar, nos dirá que uma característica gnosticista é tomar Deus como
a incompreensível fonte do todo, perfeito, latente, fechado e selado em si mesmo [...] O desenvolvimento, a limitação, a consciência de si mesmo por si mesmo é o ponto de partida da comunicação da vida divina, o começo da revelação do Deus escondido. Todas as vezes que o Ser divino primordial [é concebido] num sentido novo, [é] como pensante, falante, vivente, como sábio, justo, santo, bem-aventurado, todo-poderoso, etc. (Josef Fessler, «Gnose, gnosticisme, gnostiques», em Wetze e Welte, orgs., Dictionnaire encyclopédique de la théologie catholique, tr. I. Goschler, 3.ª ed., 1870, IX, p. 415.)
Quando confrontamos com a própria concepção guénoniana de Deus, o espaço para dúvida fica ainda mais reduzido. «Como pôde Deus, se é perfeito, criar seres imperfeitos? [... A] admissão duma criação ex nihilo equivale admitir a aniquilação final dos seres criados, porque aquilo que tem início tem fim, nada é mais ilógico do que falar, nesse caso, de imortalidade; assim, a criação entendida dessa forma não é senão uma absurdidade» (René Guénon, «Il demiurgo», em Melanges, 1978, p. 20).
Dessa maneira, Guénon se vê obrigado a recorrer a algo anterior a Deus: o Não-Ser. Estas Cartas da Tradição são breves por demais para fazermos uma longa explicação do que é o Não-Ser em toda a sua conceituação. Diremos apenas o seguinte: o Não-Ser não é o vazio. O Não-Ser é a potência de manifestação; é aquele estado em que tudo que pode vir a se manifestar, «existir», está em estado de latência, ainda a emergir dentro de um dos estados de manifestação possíveis (que são infinitos). Considere o silêncio: ele é um símbolo do Não-Ser (daí o amor, encontrado por Guénon no fim da vida, pelo hesicasmo). Não se deve entender o silêncio como a falta de som, mas o som esperando para emergir na manifestação.
(Repito aqui uma observação que fiz em meu livro René Guénon Revelado: Vida e Pensamento de um Enigma do Século XX, a sair pela Danúbio e atualmente no prelo: Em quantas circunstâncias podemos encontrar correlações entre Guénon e o pós-modernismo? Se essa conceituação sobre o silêncio está correta, e creio que está, basta ver o que ele escreveu sobre a matéria em «Silêncio e solidão», cap. v. dos Melanges já citados, bem como Os Estados Múltiplos do Ser, cap. iii., há uma coincidência notável entre o que Guénon pensa do Não-Ser e a conceituação musical de John Cage sobre o silêncio como música, que é o ponto de partida para a a famosa «4′33″». E, como argumento e demonstro no livro, não são poucos os pós-modernistas que se identificam em maior ou menor grau com René Guénon.)
Logo, como Guénon diz:
Se por Não-Ser entendemos apenas o puro nada, é inútil falar dele, pois o que podemos dizer do que é nada? Mas é bem diferente se considerarmos o Não-Ser como a possibilidade de ser; O Ser é a manifestação do Não-Ser assim entendido, e está contido no estado potencial desse Não-Ser. A relação do Não-Ser com o Ser é então a relação do não-manifesto com o manifesto, e pode-se dizer que o não-manifesto é superior ao manifesto do qual é o princípio, pois contém potencialmente todo o manifesto [...]. («Il demiurgo», pp. 21–22)
Assim, pelo menos no resumo grosseiro que temos feito, nota-se que Deus, para Guénon, não é a perfeição suprema. Antes de Deus há o Não-Ser, que é a fonte das possibilidades das quais Deus tira tudo para a criação. E por «criação» sinto que devemos entender como a emergência das potencialidades dentro do plano da manifestação. E se nos atentarmos para o que Guénon diz que «o não-manifesto é superior ao manifesto», isso significa que no instante mesmo em que algo se manifesta, isto é, passa a ser sensivelmente percebido ou emergente em alguma das possibilidades de manifestação, a coisa deixa de ser perfeita, porque ela passa a ser limitada.
Isso tudo para demonstrar que o que Guénon pensa de Deus, em sua modalidade «pessoal», coincide absolutamente com o que o dogmatismo católico pensa sobre o gnosticismo e sua tendência a ver Deus como «a incompreensível fonte de toda perfeita latente». A bem da verdade, Guénon não pensa apenas no Deus cristão como o degrau inferior ao Não-Ser: Īśvara, no Hinduísmo, cumpre as mesmas funções do Deus cristão, segundo Guénon.
Isso nos parece trazer a um problema na metafísica cristã. «Porventura poderás tirar com anzol o Leviatan e ligar a sua língua com uma corda?» (Job xl,20) Pensar em Deus, tentar compreendê-Lo em Suas propriedades, refletir ou racionalizar Seus mistérios parece, assim, em si mesmo um ato gnóstico.
Mas não creio que seja o caso. E é aí mesmo onde Guénon parece entrar em socorro ao Cristianismo na crise da sua fé.
Gnose não é em si mesmo algo anticristão ou herético. A palavra ficou eivada de preconceito porque, por azar do destino, deu-se a um grupo de teólogos heréticos esse nome. Mas, em primeiro lugar, Guénon afirma taxativamente não ser um deles: «Uma observação que devemos fazer [...] é que a gnose não deve ser confundida, como acontece com freqüência, com o que se chama de gnosticismo, pois essa não é senão uma adaptação particular [...]» (La Direction [René Guénon], «Notre programme», La Gnose, nov. 1909, p. 3). E por «adaptação particular» Guénon entende sempre «heterodoxia».
Se por um lado Guénon tem compreensões «gnosticistas» sobre o que é Deus, sua defesa da gnose não é sem mérito. Ao contrário, a reflexão gnóstica é absolutamente importante na crise da religião atual. Podemos fazer uma equiparação entre gnose e conhecimento por um instante que seja. (Digo um instante porque, no vocabulário guénoniano, as duas coisas não são a mesma e Guénon não costuma utilizar essa palavra, preferindo o termo connaissance. Que seja.) Aí entenderemos o seguinte: gnose não é uma compreensão teológica, discursiva da natureza de Deus. No plano da realização espiritual propriamente dita — coisa que, no Cristianismo, é o sentido da religião — conhecer o sentido religioso é menos importante do que dar compreensão a Deus. Isto é: ter conhecimento de que é necessário rumar à perfeição, atingir a libertação dos grilhões da matéria é o sentido último da experiência humana. E esse conhecimento não é discursivo, mas puramente intelectual e intuitivo.
Como ele mesmo explica:
Ao indicarmos as características essenciais da metafísica, dissemos que ela constitui um conhecimento intuitivo, isto é, imediato, oposto nisso ao conhecimento discursivo e mediato da ordem racional. A intuição intelectual é ainda mais imediata do que a intuição sensível, porque está para além da distinção entre sujeito e objeto que este permite subsistir [...]. (René Guénon, Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 5.ª ed. rev. e corrigida, 1976, p. 145)
Assim, quando se fala em gnose, seja no sentido guénoniano ou no sentido religioso, do que está sendo falado? Entendo que fala-se de um conhecimento da Verdade. Do ponto de vista cristão, esses dois substantivos traduzem-se num imperativo: conhecimento é a compreensão da doutrina, e a Verdade é Cristo. Se na gnose não há distinção entre sujeito e objeto, entre então o conhecimento implica pura e simplesmente na compreensão da necessidade de se imitar Cristo.
E qual é o nome do maior best seller cristão depois da Bíblia?
Ainda do ponto de vista, a reabilitação da palavra gnose do modo que Guénon faz é legítimo. Gnose, explica Fessler, já citado, é a
ciência considerada do ponto de vista religioso. Ora, as Santas Escrituras concebem uma dupla gnose, uma ciência verdadeira e outra ciência falsa; ela louva e recomenda aquela e estigmatiza e rejeita esta. [...] Pela verdadeira gnose, a inteligência humana penetra profundamente no espírito das verdades reveladas, compreende-as sob todos os seus aspectos e em todas as suas fases, por todos os meios à sua disposição, de modo que a fé compreendida não só ilumina a inteligência, mas anima todas as faculdades e toda a vida do gnóstico cristão. Essa é a gnose que o Filho de Deus revelou e transmitiu à humanidade. (Fessler, op. cit., p. 413, grifos meus)
Não creio que nenhum autor cristão, pelo menos na tradição romana e ocidental, tenha se preocupado com nada disso. Mesmo a definição de Fessler é vaga e pálida, ainda mais quando se compara às preocupações «gnósticas», e não «gnosticistas» de Guénon. É por isso que a reabilitação proposta pelo grande autor tradicionalista, com tudo que ela carrega consigo, com suas reflexões simbólicas e universais, é tão importante. Porque com a perda da gnose cristã, tudo isso, da sabedoria intelectual até a prática artística, se dissolveu no materialismo embrutecidos.
E é de se perguntar: Será que não existe um lugarzinho para o Não-Ser na gnose cristã? Talvez Guénon esteja errado nessa, e Deus seja mais Não-Ser do que ele pensava.