Carta 009: A Carlos Ramalhete, por ocasião do seu texto sobre Olavo de Carvalho
Resposta a um texto sujo, sujo, sujo, sujo.
Há coisas na vida que começam muito bem, que nos deixam muito animados, mas que depois se degringolam dum jeito tão feio e amargo que era melhor nem terem começado. Essa podia ser a descrição dum namoro malfadado. Só que eu estou falando do texto de Carlos Ramalhete publicado na Gazeta do Povo no dia 27 de janeiro.
A figura desconexa, exuberante, às vezes escandalosa, e jamais desinteressante de Olavo de Carvalho atraiu e certamente não parará de atrair muita gente. Olavo foi por quase trinta anos, a contar da publicação da Nova Era e a Revolução Cultural (1994), a figura polar e luminosa da intelectualidade brasileira. Nenhum outro escritor incitou tantas paixões e pôs em movimento tantas mudanças no cenário cultural, intelectual, político, e editorial do Brasil. Ninguém que já se interessou por pelo menos duas horas na vida pelo que o Olavo tinha a dizer deve ter passado batido por alguma lista com o título «125 livros que fizeram a cabeça de Olavo de Carvalho» ou «Lista de leituras do COF», esta também com uma quantidade prodigiosa de indicações.
Muitas das indicações do Olavo eram de livros há muito esgotados, ou jamais editados, no Brasil. Algumas ainda são. A principal é René Guénon, que espanta pela popularidade proporcional à sua inacessibilidade. Se o WorldCat não me engana, há apenas duas edições profissionais de Guénon em português no Brasil: a tradução de Fernando Galvão d’A Crise do Mundo Moderno, publicada em 1948 pela Martins, e a de J. Constantino Kairalla Riemma d’Os Símbolos da Ciência Sagrada para a Pensamento, posta à lume em 1993. Mas Guénon é a exceção. Quase tudo que o Olavo indicou está à venda. Já há molecotes que atingiram a idade da razão que cresceram num Brasil em que Ordem & História e a História das Idéias Políticas de estão aí e que pensam que Voegelin sempre foi popular. Em vinte anos, o Great Code de Frye recebeu duas traduções, e alguma cópia da Anatomia da Crítica aguarda comprador na famosa edição azul da É Realizações.
Nenhum desses nomes são Peirce, Durkheim, ou Lacan, best sellers perenes de acadêmicos e estudiosos desta nossa taba. Todos são descobertas do Olavo. As leituras, indicações, e percepções dele eram pontos tão distantes da curva que decerto pertenciam a outra estrada. Naturalmente, as pessoas se interessam em saber: Como esse sujeito sabia disso tudo? Por onde que ele andou para conhecer leituras tão diversas?
Sotaque gnóstico
Eu sei que eu mesmo já me perguntei isso. Sei que o Carlos Ramalhete também já deve ter se perguntado. Parte da resposta vem por notas biográficas. Parte dela está no passado «colorido» de Olavo de Carvalho. Daí o interesse tão intenso que alguns sentem em conhecer a biografia do Olavo, especialmente nas décadas que precedem os anos 1990. Essa foi a época da Escola Júpiter, de entrevistar ET para a Revista Planeta, da viagem a Bloomington rumo a Schuon, do encontro perenialista no Peru, da prática da letal arte marcial do tai-chi, entre outras histórias folclóricas.
Uma vida como essa deve ser respeitada antes de ser julgada. Para um pensador que acreditava tanto na importância da concretude da experiência humana, desdenhar ou jogar poeira nos olhos do cadáver ainda quente do Olavo da maneira que Carlos Ramalhete faz no artigo dele é algo que não se faz. Talvez seja por causa da importância maiúscula que ele teve no projeto — ainda incipiente — de repopularização do Catolicismo no Brasil. O ex-tariqeiro, ex-protestante, ex-new ager Olavo de Carvalho ter reconduzido mais pessoas à fé do que todos os tomistas e todos os fratelli de S. Pio X é um insulto que não pode ficar sem satisfação.
Daí que Ramalhete pinte um Olavo froixelado, tentando se enturmar com os católicos numa mailing list e justificando o próprio protestantismo porque não aprendera a se desfazer do «sotaque gnóstico» com o qual aprendera a falar. Ou que passe o texto inteiro dando zagunchadas no morto e piscadelas à platéia: «fomos, ambos acompanhados por grupos de alunos, beber uma cerveja. A dele sem álcool», como um protestante ex-muçulmano. Além disso, a pedagogia do Olavo era, como é o pensamento tradicionalista, sagrada ao caos. Aqui é melhor citar Ramalhete de maneira extensa:
A base do filosofar e da ação política de Olavo – diferentemente do que seria o caso num filósofo ou cientista político acadêmico – vem dessa visão lunar de mundo, profundamente elitista e pouco disposta a expor-se plenamente à luz. Mesmo sua pedagogia, errática e dispersa, pode ter suas origens traçadas à sagração gnóstica do caos.
Assim como não saber escrever é algo muito ruim para quem deseja ser escritor, não saber o pensamento do biografado é muito ruim para quem quer escrever um arrazoado sobre um pensador recém-falecido. (De repente é por isso que Ramalhete passe boa parte do texto fofocando como uma velha beata. Deve ser mal de católico de boina. Pergunto-me se ele agüentaria um texto sobre as fofocas judaicas sobre o próprio.)
Enfim, voltando. Certamente, o pensamento e a pedagogia do Olavo são «caóticas», mas não por causa do sotaque gnóstico do Olavo. O pensamento do Olavo encontra-se — e eu sou o primeiro a dizê-lo, como já disse — em caos porque o Olavo era o último representante do «jornalista filósofo», figura tarimbada do século XIX e do século XX e que começa a entrar em extinção nos anos 1960 com o início do sistema universitário brasileiro. (Há um ótimo artigo acadêmico sobre isso, que merece o título de drama, usando as duas estrelas maiores da filosofia jornalística e da profissionalização universitária: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Aqui.) Aliás, o Olavo lembra em muito um pensador como André Bazin, pai da crítica de cinema moderna, e patenteador do conceito de realismo fotográfico. Autor de mais de 2.100 artigos, apenas seis por cento deles encontram-se reunidos em livros; dos seis por cento, uma fração ainda menor foi traduzida para outros idiomas. Só agora sabe-se que Bazin queria dizer com «realismo» não o realismo social, a reprodução fotográfica da realidade corpórea, mas sim uma noção análoga ao realismo metafísico medieval. Escrevendo para zines, para boletins de cineclube, para revistas de pouca circulação e de vida curta, Bazin jamais teve tempo de organizar o próprio pensamento ou os próprios escritos. O mesmo pode ser dito sobre o Olavo, com a adição de que o Olavo só estudava e ensinava o que estivesse o interessando naquele momento, deixando o assunto de lado quando o interesse passava. Isso explica e complementa explicação para a quantidade mínima de livros que ele publicou que não sejam ensaios ou artigos de jornal coligidos. (E que estão sendo porcamente, horrorosamente, criminosamente «organizados» por uma equipe de incapazes.)
Guénon e Olavo
Contudo, não posso ignorar que o termo «sotaque gnóstico» tenha lá suas utilidades. Talvez «sotaque tradicionalista» ou «guénoniano» seja mais apropriado. Contudo, não posso negar que Ramalhete tenha razão em dizer que o Olavo aprendeu a falar intelectualmente com os tradicionalistas/perenialistas. O interesse por organizações secretas, por grandes movimentações ocultas, a nascença da tese do globalismo têm influências guénonianas.
Mas não porque a «base do filosofar e da ação política de Olavo – diferentemente do que seria o caso num filósofo ou cientista político acadêmico – [venha] dessa visão lunar de mundo, profundamente elitista e pouco disposta a expor-se plenamente à luz.» É porque parte da obra de René Guénon (especialmente na Teosofia: História de uma Pseudo-Religião) explica o nosso malferido mundo moderno por meio da ação de grupos ocultos que se ocupam «parodiar» ou «inverter» a Tradição. Da mesma maneira, Guénon, como Ramalhete alude corretamente, o destino da humanidade também está nas mãos dos iniciados na Tradição. A formação da elite iniciada é uma das principais ocupações da escola tradicionalista. Afinal, no estribilho guénoniano, «as leis do poder se propagam de maneiras perfeitamente objetivas».
Todo o sotaque tradicionalista de Olavo de Carvalho se encontra exatamente aí. Se Olavo falou mais sobre Guénon, como, por exemplo na insistência em dizer que os sacramentos católicos têm poder iniciado, isso se deve muito mais a uma guerra lingüística do que por uma filiação (ou uma criptofiliação) ao tradicionalismo. Olavo procura legitimar o que Guénon tenta escarnecer, porque para este (e para legítimos guénonianos, como Luc Benoist), o Cristianismo é uma religião frustrada. Benoist: «A doutrina cristã ficou inevitavelmente distorcida no instante em que sua alta espiritualidade se viu confrontada pelas exigências da vida cotidiana.»
Difícil enxergar a proximidade disso com o que o Olavo diz. É difícil enxergar aí também como a Igreja não pode se beneficiar dum rebate antiguénoniano nesse tópico.
Além disso, como falei acima, a existência e a transitoriedade da vida concreta é um dos pontos centrais da sua filosofia. Até mesmo no auge da fase esotérica, bem nos meios dos anos 1980, isso podia ser percebido. Um exemplo claro disso está n’«A dialética simbólica», ensaio ora disponível em tomo de mesmo nome (2015), mas publicado originalmente em Astros & Símbolos (1985). Nesse ensaio, Olavo tenta — toscamente — irmanar duas pontas do seu pensamento: seu pendor simbólico e seu humanismo empirista, notavelmente aristotélico, fazendo exatamente o que Benoist diz que o cristianismo não pode fazer: conjugar a espiritualidade às exigências cotidianas. «Não existe», diz Olavo,
equilíbrio perfeitamente estático em parte alguma do mundo sensível. Uma vez atingido o momento de equilíbrio, o ponto central desliza, o conjunto escapa da simetria fugaz, e cai…. Notamos assim que, na experiência vivida, na sucessão dos momentos reais, o ponto de equilíbrio não é propriamente um ponto, mas uma linha. («A dialética simbólica», in A Dialética Simbólica, 2.ª ed., Campinas, VIDE Editorial, 2015, p. 18)
O que se chama de «simbólico» é o que está apenas no «extremo limite do cosmos». O padrão simbólico é «progressivamente mais e mais complexo à medida que descemos do plano universal para os mais particulares e sensíveis» (ibid., p. 19). Isso é completamente distante de Guénon, para quem a vida prática é a aplicação indiscriminada das leis metafísicas simbolizadas no campo material (vejam-se «A metafísica oriental» e A Crise do Mundo Moderno). Não só na «Dialética simbólica», mas em vários outros livros dos anos 80 e 90, Olavo põe Guénon ao lado de figuras que, se vivo fosse, fariam a Esfinge miar constrangida: Gaston Bachelard, André Barbault, além de ninguém mais, ninguém menos, que Michel Foucault, que Olavo chama de «historiador fino» (ibid., p. 30), entre outros.
(Como observação adicional, eu diria que a famosa «astrocaracterologia» faria o Olavo repetir de ano na Escolinha do Professor René. Guénon não dava muita bola para a astrologia, nem mesmo para a astrologia babilônica, porque essa era apenas o «último estágio» duma tradição anterior, mais rica. Saber que um «aluno» dele não apenas lia astrologia, como também quis inventar um sistema novo, a um só tempo jungiano, new ager, e «tradicionalista», o faria ligar para os pais do discente.)
Agora, por que não contrastar os parágrafos acima com o que Ramalhete fala sobre as supostas raízes olavianas?
É nessas raízes, em que o ocultismo se mistura à supervalorização do simbólico e a inversão crowleiana da moralidade busca ativamente o poder de um caos primevo, que encontramos a base do pensamento do Olavo.
’Tendi.
Descartes e Olavo
Eu precisaria de muito mais espaço para atacar um último ponto — que talvez seja o mais importante, mas é o que menos interessa. Segundo Ramalhete, Olavo tenta resolver a aporia da individuação do homem (por que que eu sou eu e você é você apesar de você e eu sermos humanos) utilizando
a filosofia moderna, cartesiana, e assim a “resolveu” para o homem, mas não para qualquer outro ente individual, ao usar o “cogito” cartesiano como atualizador da individuação. “Penso, logo existo”, e assim o homem – para Olavo – é o homem que pensa, e é homem quem pensa e só quem pensa. É-se homem por pensar. Mais ainda, por pensar por conta própria. Quem “não pensa”, quem vai sendo levado pela vida sem a examinar, destarte, não é plenamente individuado como ser humano.
Eu afirmo categoricamente: se as fofoquinhas, se os disse-me-disses do texto, ou se a simples demonstração que fiz acima de que Carlos Ramalhete escreveu um texto não apenas ignorante, mas sujo, sujo, sujo, sujo, essa passagem deve servir de prova cabal. Aqui ele simplesmente está enganando o leitor. Para responder a sacanagem de Ramalhete, eu teria que reproduzir todas as páginas de Visões de Descartes, que é exatamente sobre o problema do cogito cartesiano, e eu não tenho a inclinação de fazê-lo.
A mim pareceu que o Sr. Carlos Rabanete (apelido de quinta série que talvez o Olavo atribuiria ao sujeito, se não o já tivesse atribuído) escreveu tomado pelo rancor e a inveja de alguém que se sentia intelectualmente superior e moralmente casto, mas não teve o reconhecimento conquistado por um errático (na visão dele). Os menos letrados chamam-no de astrólogo e os eruditos, de gnóstico. Fosse o que fosse, Olavo de Carvalho conseguiu tocar até os mais achavascados como eu. As infaustas impressões do Sr. Carlos Rabanete sobre Olavo de Carvalho e sua tentativa de profetizar um legado inútil foram de pronto rebatidas nesta brilhante e arrasadora resposta. Parabéns, Sr. Victor Bruno.
O RABANETE escreveu aquele texto com uma malícia DEMONIACA.