Ninguém em língua inglesa descreve o calor como Graham Greene.
O que talvez seja um defeito.
Digo isso após terminar de ler O Poder e a Glória (1940). Este é o terceiro romance de Greene que leio. Antes vieram Fim de Caso (1951) e O Cerne da Questão (1948). Meu veredito sobre o poder de descrever o calor vem deste segundo livro. Como O Poder e a Glória, O Cerne da Questão se passa num local tropical. E como em O Poder e a Glória, o calor e a umidade são parte dos elementos que mexem com a psique das personagens.
Entretanto, eu realmente me pergunto: Greene é um escritor bom?
Greene faz parte de uma geração de escritores britânicos que encontrou na Igreja um caminho para lidar com as preocupações que alimentavam suas literaturas. Essa é a geração de Stephen Spender, Christopher Isherwood, Evelyn Waugh, Aldous Huxley e Rex Warner.
Pelo menos dois desses escritores —Waugh e o próprio Greene— escreveram suas obras-primas após a conversão. Waugh com Reviver o Passado em Brideshead (1945) e Greene com praticamente toda a sua carreira após A Inocência e o Pecado (1938). Ele ainda tinha toda a vida pela frente.
Só que ao contrário de Waugh, que é um mestre da ironia e dos sentimentos adolescentes, além de ter um admirável poder de construção dramática e de cenografia, Greene é seco e científico. Pior, é retórico. (Esse é, aliás, um defeito que muitos romancistas católicos convertidos possuem. Waugh, é outro que comete esse crime. Reviver o Passado em Brideshead é ao mesmo tempo sua obra-prima e seu último grande romance. Todos os outros pecam pela retórica.)
Mas vamos nos atentar primeiro à repetição. Ele parece sempre usar os mesmos recursos. Logo no início do livro encontramos o dentista, Mr. Trench, andando pela capital do estado de Tabasco:
The river went heavily by towards the sea between the banana plantations; the General Obregon was tied up to the bank, and beer was being unloaded—a hundred cases were already stacked upon the quay. Mr Tench stood in the shade of the customs house and thought: what am I here for? Memory drained out of him in the heat.
O tema da memória e da repetição será retomado várias vezes, muitas vezes com a mesma construção, em todo esse primeiro capítulo: «That was the whole world to Mr Tench: the heat and the forgetting, the putting off till tomorrow, if possible cash down – for what?»
É claro que a repetição é uma técnica que os grandes escritores podem usar de forma liberal. José Lins do Rêgo escreveu sua primeira obra-prima, Fogo Morto (1943), usando o toque martelo do selador Mestre José Amaro, como refrão para uma existência feita a das personagens de O Poder e a Glória: miserável, alienada, a um passo de poder ser chamada de insatisfatória (um passo atrás).
Mas essa falta de recursos no repertório de Greene seja talvez, junto com a retórica, a razão mesma do interesse inegável que suas obras podem suscitar.
É que no cômputo de todas as situações que O Poder e a Glória suscitam (a história, passada logo após o fim da Guerra dos Cristeros, se trata dum padre anônimo que procura fugir da perseguição anticatólica no estado de Tabasco, México, enquanto encontra pessoas que necessitam do seu ministério), o que se vê é uma elegante e articulada arquitetura dramática. Muito do romance se passa dentro da cabeça do padre alcoólatra, que tenta, sem sucesso, analisar suas escolhas e a trajetória da sua vida.
Sem sucesso porque o padre, sempre prestes a se entregar ao desespero, está sempre no contexto imediato. Preso à situação. Ao caos. A violência. E é aí que o método de Greene se torna forte: as descrições de suor, de calor, de umidade passam a perder sentido e substância. Elas viram qualquer coisa. Até mesmo horror:
It was a male child—perhaps three years old: a withered bullet head with a mop of black hair: unconscious, but not dead: he could feel the faintest movement in the breast. He thought of disease again until he took out his hand and found that the child was wet with blood, not sweat. Horror and disgust touched him—violence everywhere: was there no end to violence?
Greene não é capaz de dramatizar momentos, de usar pausas e retornos, de talvez bemolizar sua prosa que parece toda ser escrita em tom-maior e corrida. Talvez ele não esteja no interesse de fazer isso. Até porque tudo na vida desse padre acontece de repente e sem aviso:
At that moment, while her lips were on his hand, the child’s face wrinkled, the eyes opened and glared at them, the tiny body shook with a kind of fury of pain; they watched the eyeballs roll up and suddenly become fixed, like marbles in a solitaire-board, yellow and ugly with death.
Esses eventos, e as pessoas que o padre alcoólatra encontra em sua peregrinação, serão depois repassados no final do livro quando —como Deus— podemos ver o resultado final das ações do padre na vida das pessoas que ele conheceu.
É também uma maneira fria, mas elegante, que Greene encontra de dizer que ao contrário do que o padre pensou durante toda a narrativa, seus pecados não previnem sua santidade, a maldade não vence sobre a fé e a esperança não morre nem mesmo na mais cruel das perseguições.
Minha dúvida é apenas: existia maneira melhor de narrar todas essas coisas?
Talvez sim. Mas não deixa de ser curioso que um livro sobre um padre em dúvidas, a despeito de jamais deixar de realizar suas obrigações, deixe o leitor em dúvidas sobre a sua qualidade, a despeito de ser uma grande leitura.
Presenteei uma garçonete, que havia me pedido um livro de presente, com esse romance. Espero que tenha aproveitado a leitura, eu gostei bastante.