Elías de Tejada explica os 4 momentos modernos
Eu acho que são cinco momentos. Vejamos o porquê.
Francisco Elías de Tejada é um dos pensadores mais importantes do tradicionalismo espanhol.
De todos os tradicionalismos, o que inclui o tradicionalismo guénoniano (ou tradoperenialismo, como eu chamo), o tradicionalismo espanhol é aquele que é o mais completo e o mais prático.
Prático no sentido de que ele responde a um problema agudo e real, procurando uma solução para esse problema.
Estamos falando da situação espanhola após os fracassos das Guerras Carlistas, culminando na queda da monarquia em 1873 e na Restauração Bourbônica de 1874.
A modernidade não nasceu do dia para noite. Antes, foi fruto dum longo e doloroso processo. Ninguém acordou num dia e disse: —Ei, estamos em pleno mundo moderno!
Carlismo e tradicionalismo
O tradicionalismo espanhol é o fundo teórico do carlismo. A rigor, o carlismo não é mais do que a resistência de certos setores políticos e intelectuais da Espanha à atitude do Rei Fernando VII de ratificar uma lei de Carlos IV que mudava a ordem de sucessão dinástica.
Até aquela altura, vigorava na Espanha a lei semi-sálica de Felipe V: uma mulher ascenderia ao trono apenas no caso de não haver herdeiros masculinos. Uma série de reivindicações populares, desde 1812, protestavam contra Fernando, que, por sua vez, era abraçado pelas oligarquias madrilenhas.
Enquanto isso, o povo apoiava D. Carlos, Príncipe das Astúrias, irmão do Rei Fernando.
Esse foi o momento em que duas forças —conservadoras e liberais— passaram a intensificar seu estranhamento. Procurando concretizar os poderes das oligarquias, neutralizar a influência do seu irmão D. Carlos, Fernando, já à beira da morte, promulga uma reversão da lei semi-sálica. A coroa iria então para sua filha, Isabel, que ainda estava na barriga da mãe, Maria Cristina das Duas Sicílias.
O que parecia uma simples disputa dinástica se transformou num duelo entre modernidade e tradição. Eu sei que é muito fácil ser cínico e dizer: São só duas facções aristocráticas querendo manter os privilégios da nobreza.
Só que o cinismo é uma doença da alma.
A atitude do Rei Fernando foi no sentido de solidificar a força de Madrid como centro das decisões políticas da Espanha. Os liberais defendiam a mudança porque seria mais um passo decisivo no estabelecimento do Estado-nacional burguês espanhol. D. Carlos e seus correligionários, a primeira geração dos carlistas, defendiam exatamente o contrário.
A busca pela elaboração exatamente do que seria esse contrário é o que estabelece o paradigma do tradicionalismo.
Tradicionalismo, na concepção espanhola do termo, não é apenas um «retorno aos costumes antigos», uma «preservação das nossas tradições».
Não é, como no conservadorismo burkeano, «a preservação do fogo».
Antes, é a formulação orgânica e dinâmica dos caminhos e do desenvolvimento de uma sociedade dentro de liberdades individuais e de um espírito comunal.
Ele não tenta de forma alguma negociar o estado corrente. Não há, na concepção tradicionalista, a ilusão de que uma «onda conservadora» que procura «melhorar os costumes da sociedade», possa funcionar dentro do âmbito da democracia liberal, do Estado nacional e do neo-constitucionalismo.
(Feito fazem aqui.)
Tradicionalismo, na concepção espanhola do termo, não é apenas um «retorno aos costumes antigos», uma «preservação das nossas tradições». Não é, como no conservadorismo burkeano, «a preservação do fogo».
Pelo que o tradicionalismo luta?
A maior parte dos autores tradicionalistas dirá que o movimento luta por três coisas.
1) Dios
2) Fueros
3) Patria
4) Rey
1) Dios
Dios representa o Reinado Social de Jesus Cristo. A maior parte daqueles familiarizados com o tradicionalismo católico deve se lembrar que isso é uma propriedade importante de movimentos como a Fraternidade de S. Pio X.
Isso significa que toda a autoridade deriva de N. Sr. Jesus Cristo. O que significa também que a moralidade e a política devem seguir a estrita ordem da religião revelada.
Ou seja, a Igreja é a religião do Estado e toda a sua organização —política, social e econômica— partem dela e a ela deve voltar.
2) Patria
Patria significa as Espanhas.
Sim, no plural.
No panorama tradicionalista, a Espanha é uma multiplicidade de regiões que a despeito de compartilharem uma língua e uma história, devem ser preservadas em sua diversidade. «Eram povos vários e diversos», os das Espanhas. Havia o «pacato comerciante catalão, o sardento arisco, o sonhador napolitano, o andaluz indiferente, o basco sensivelmente valoroso e o galego ou português das estirpes celtas.»
Essa diversidade é plasmada e dinamizada no rei, que, antes mais nada, luta para que essas diferenças funcionem em harmonia e em concerto ao seu redor. O rei é menos uma figura de autoridade como de serventia.
Como cita o próprio Tejada, quando Carlos II assinou seu testamento, disse: «Não sou nada».
No tradicionalismo, a instituição fundamental do modelo social é a família, «prolongamento fisiológico e espiritual do indivíduo.»
3) Fueros
Fueros, ou foros, são as unidades administrativas espanholas.
A tradição administrativa portuguesa tem unidades similares: são os municípios.
Em teoria, os fueros seriam unidades autônomas e independentes. (É por isso que, no Brasil, temos câmara de vereadores. Teoricamente, esses sujeitos são responsáveis pela administração autocéfala das cidades, funcionando de maneira independente das escalas mais altas do poder.)
Você deve se lembrar que em 2023, Nayib Bukele reduziu em 83 por cento o número de municípios de El Salvador. De 262, o país passou a ter 44.
Na ocasião, Bukele procurou um sistema que garantisse mais supervisão do Executivo sobre as administrações locais, mas em princípio ele estava certo.
No sistema municipal —ou foral—, os municípios têm autonomia. São menores em número, mas possuem mais capacidade de autogestão. Seu destino é decidido pelos membros da localidade.
Essa foi uma das revoltas que ocasionaram o racha entre carlistas e isabelinos. D. Carlos queria preservar esse sistema, profundamente antiburguês e contrário ao princípio do Estado-nacional, na sua amada Espanha.
Vale lembrar que o Brasil tem 5.570 municípios. Em 1988, eram 4.314. Pouco menos de 30% dos municípios do Brasil foram criados nos últimos trinta e sete anos.
Todos dependentes de repasses da Federação.
4) Rey
A figura do Rey é a figura do pai nacional. No tradicionalismo, a instituição fundamental do modelo social é a família, «prolongamento fisiológico e espiritual do indivíduo.» O governo do rei é um governo pessoal e patriarcal, como diz Rafael Gambra. A organização dos estamentos e instituições administrativas eram assunto alheio ao rei, que, por sua vez, tinha o dever de guardar o direito e de ser protetor dos homens e dos grupos.
O rei é menos uma figura de autoridade como de serventia. Como cita o próprio Tejada, quando Carlos II assinou seu testamento, disse: «Não sou nada».
O colapso da tradição e os quatro momentos
Os quatro elementos que definem o carlismo e o tradicionalismo espanhol são os quatro elementos postos em cheque pela modernidade naquilo que chamo de «os cinco momentos modernos».
Foi Francisco Elías de Tejada quem explicou, em sua La monarquía tradicional (1954) os momentos definidores do irrompimento da modernidade.
A modernidade não nasceu do dia para noite. Antes, foi fruto dum longo e doloroso processo.
Ninguém acordou num dia e disse: —Ei, estamos em pleno mundo moderno!
«Desde 1517 até 1648 a Europa nasce e cresce, e à medida em que nasce e cresce a Europa, padece e morre a Cristandade», escreveu Tejada.
Segundo o autor, foram um conjunto de rupturas. Quatro, como quatro são os pontos do tradicionalismo espanhol.
1) A ruptura de Lutero
Lutero, ao se opor à Igreja Católica, desencadeia uma revolução religiosa. Embora suas idéias compartilhem algumas semelhanças com hereges medievais (Wycliff e Hus, especialmente), sua grande contribuição foi a gigantesca difusão de sua doutrina.
Lutero rompe com a unidade da fé que sustentava a Cristandade medieval, resultando em um equilíbrio mecânico entre várias crenças, em vez de uma fé única e universal. Isso marca o fim da estrutura orgânica da Igreja e dá início a uma Europa fragmentada.
2) Maquiavel e a teoria da soberania
Lutero deságua em Maquiavel e Bodin. A ética medieval, que via a virtude como o controle das paixões e a submissão a Deus, é substituída pela ética maquiavélica.
Para Maquiavel, a virtude (virtù) é a força e a ambição do indivíduo, que busca poder sem considerar a moralidade cristã. O que importa é o sucesso pessoal, não a relação com Deus.
Essa mudança representa uma transição do Cristianismo para o paganismo, onde o bom e o mau são definidos pelo equilíbrio de forças e pela vontade de dominar.
3) A mecânica de Hobbes e Grócio
Essa vontade de dominar é o que viabiliza a mecânica das filosofias de Grócio e Hobbes. Elas substituem a concepção escolástica do direito natural, que se baseava no ordenamento divino da criação.
Enquanto Sto. Tomás via o direito natural como uma ordem criada por Deus, Grocio e Hobbes vêem-no como leis que regem uma máquina, independentes de um Criador. A idéia de um direito divino é abandonada.
4) Montequieu e a Paz de Vesfália
A evolução das instituições políticas européias também adota uma visão mecanicista, afastando-se do corpus mysticum da Cristandade medieval.
No plano interno, ao absolutismo monárquico segue-se o absolutismo das democracias ou o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu.
Internacionalmente, os tratados de Westfália marcam o início de um sistema de equilíbrios entre potências, baseado em alianças e contradições.
E o que eu penso?
Mais do que contribuir apenas para o espaldar teórico do tradicionalismo, Elías de Tejada também explica argutamente o porquê do panorama político moderno ser essencialmente realista.
Realismo nas relações é a doutrina que fala que as relações entre os Estados visarem a disputa de segurança e a busca da hegemonia. (Vejam-se as obras de John Mearsheimer.)
Essa é a conseqüência natural de se remover o princípio do Reinado Social de Cristo do panorama político-social do mundo. É a dessacralização de toda a arquitetura cognitiva e prática da humanidade.
Tejada menciona brevemente a escolástica como contrapeso à ética pagã (no caso de Lutero) e sua concepção de virtude como freio aos apetites humanos (em contrapartida à virtù maquiavélica).
Não acho que seja possível fazer um arrazoado dos momentos modernos sem mencionar a queda do realismo filosófico pelo nominalismo como um ponto capital da emergência da modernidade.
Assim, acho que são quatro, não cinco, os momentos formadores da modernidade.
Dessa forma:
«Eram povos vários e diversos»: Francisco Elías de Tejada, La monarquía tradicional, Madrid, Rialp, 1954, pp. 43, 46.
«Não sou nada»: Ibid., 52.
«prolongamento fisiológico e espiritual do indivíduo»: Rafael Gambra Ciudad, Eso que llaman Estado, p. 22.
«Desde 1517 até 1648»: Elías de Tejada, op. cit., p. 37.
Eu aguardo com ansiedade e curiosidade o livro do Hilton Boenos Aires sobre Maquiavel. Nele, o argumento é o secularismo europeu não surgiu do florentino. O título é Quando os Homens Voltarão a Viver como Deuses: A Função do Mito e da Religião na Obra de Nicolau Maquiavel, e é publicado pela Appris de Curitiba.