Como falei noutra rede social, ultimamente tenho estudado o tradicionalismo espanhol. Alguns leitores devem ter notado freqüentes menções à obra de Rafael Gambra Ciudad, especificamente Eso que llaman Estado, que foi o que li primeiramente e com muito vagar. Agora estou lendo Francisco Elías de Tejada. Esses estudos, junto com outros, farão parte duma obra que pretendo escrever num futuro breve.
Também falei que posso traçar desde já certas correspondências entre a obra de René Guénon e de outros tradicionalistas da estirpe desse autor com o tradicionalismo espanhol. Claro está que temos que fazer distinção de termos: o tradicionalismo guénoniano não é o tradicionalismo espanhol, a despeito dos dois compartilharem o mesmo nome. As preocupações e as tônicas desses «movimentos» são distintas e separadas.
Mas todas as boas idéias vêm do mesmo lugar pois o que é bom vem de Deus. Algumas similaridades me pareceram óbvias; já lendo Gambra o observei e depois o confirmei com Elías de Tejada. Algumas imagens evocadas por Gambra são rigorosamente aquelas apontadas como os símbolos do período final do Kali Yuga por Guénon: «¿qual es la salida posible para este universo centralizado y geométrico en que se ha encerrado el propio hombre?» (Eso que llaman Estado, 1958, p. 16). A imagem do universo fechado é a mesma evocada por Guénon quando menciona que o mundo moderno, o mundo do final do Kali Yuga, é um mundo bidimensionalmente quadrado e tridimensionalmente cúbico. De modo geral, todo o capítulo «El arcecamiento y la persona» trazem observações que foram feitas similarmente —às vezes com as mesmas palavras— n’O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos. Veja-se:
Tras un idealismo exagerado que pretendió agotar toda la realidad en sus construcciones conceptuales, deductivas y matemáticas, y que llegó a inspirar todos los sectores del pensamiento en su tiempo [...]. En filosofía, un idealismo y logicismo absolutos se elevan hasta considerar la realidad entera como un autodesarollo de la idea. Un Yo supraindividual, lógico, vería la realidad histórica y futura como un evidente teorema matemático; y toda la vida diaria de los hombres, con su contingencia existencial, su azar y su emoción, su calor vital y su aparente libertad, no sería sino un defecto de perspectiva inherente a la limitación dd Yo individual. (Ibid., pp. 19, 23)
Agora vejamos Guénon:
Ainsi, pour prendre un exemple qui se rapporte directement à notre sujet, les nombres pythagoriciens, envisagés comme les principes des choses, ne sont nullement les nombres tels que les entendent les modernes, mathématiciens ou physiciens, pas plus que l’immuabilité principielle n'est l'immobilité d'une pierre, ou que la véritable unité n'est l'uniformité d'êtres dénués de toutes qualités propres ; et pourtant, parce qu'il est question de nombres dans les deux cas, les partisans d'une science exclusivement quantitative n'ont pas manqué de vouloir compter les Pythagoriciens parmi leurs « précurseurs » ! [… E]n dépit de leur prétention aux « idées claires » (héritage direct, d'ailleurs, du mécanisme et du « mathématisme universel » de Descartes), nos contemporains mélangent de bien singulière façon les choses les plus hétérogènes et les plus essentiellement distinctes ! (Le Règne de la quantité et les signes des temps, 1945, pp. 12, 242)
Naturalmente, não quero insinuar que Guénon influenciou Gambra. Até porque as correspondências se encontram em outros autores.
Em La monarquia tradicional, Tejada cita o jurista e político Juan Vázquez de Mella, que numa das suas obras escreveu: «Não creio que a tradição seja um estanque de águas fixas e invariáveis que não possa ser acrescida com novos córregos que caiam das fontes puras da montanha.»
Aqui está um bom lugar para distinguirmos mais as semelhanças e diferenças dos tradicionalismos. A imagem da «montanha» é um símbolo que aparece repetidamente entre os tradoperenialistas. Talvez o momento mais evocativo seja no ensaio «Paths That Lead to the Same Summit», de Ananda K. Coomaraswamy. O simbolismo da montanha já aparece no título: o summit é o pico da montanha. No final do texto, Coomaraswamy escreve:
There are many paths that lead to the summit of one and the same mountain; their differences will be the more apparent the lower down we are, but they vanish at the peak; each will naturally take the one that starts from the point at which he finds himself; he who goes round about the mountain looking for another is not climbing. Never let us approach another believer to ask him to become “one of us,” but approach him with respect as one who is already “one of His,” who is, and from whose invariable beauty all contingent being depends! («Paths That Lead to the Same Summit», in The Bugbear of Literacy, 1949, p. 59)
Porém, quando Don Vázquez de Mella escreveu sua observação sobre a montanha e os córregos, ele inverteu a ordem das coisas. Nada se acrescenta à tradição; não existem, do ponto-de-vista-tradicional, novas fontes que acrescem vários córregos. Antes, é a mesma fonte que multiplica-se em vários córregos.
É possível que Don Vázquez estivesse pensando na multiplicidade de povos da Espanha, súditos autônomos sob a mesma coroa. Bascos, extremenhos, andaluzes, asturianos e outros têm diferentes formas de organização política e social, e o Império Espanhol como um todo tinha os mais diversos povos sob sua proteção. Talvez por «novos córregos», Don Vázquez pensasse que do ponto de vista espanhol, há sempre espaço para novas formas de vida. Pode até ser. Só que a rigor não há «novas formas de vida». Há apenas formas de vida tradicionais que não conhecemos. Todas vindas da mesma Fonte.
Daí que a preocupação política, ainda que necessária, pois nosso contexto é político, tenha quase sempre sido secundária para a escola tradoperenialista. Mas é importante pensarmos isto: Não há novas fontes, apenas divisões da mesma fonte. Como disse Coomaraswamy: «Novas canções, sim; mas não novos estilos, porque eles podem destruir nossa civilização.» (Christian & Oriental Philosophy of Art, 1956, p. 11)