Carta 014: Quem é René Guénon?
Quem era, o que queria, e o que dizia um dos maiores nomes do pensamento do século XX?
Todo mundo tem medo dele, todo mundo quer ler os livros dele, mas ninguém sabe como começar.
Pelo menos até agora.
Assim é a recepção de René Guénon do Brasil. Talvez Guénon se adequa naquilo que Italo Calvino (creio que foi Italo Calvino) disse sobre os clássicos: todo clássico é mais conhecido do que lido.
Apesar de circular de uma forma ou de outra no Brasil desde 1948, quando Fernando Guedes Galvão publicou sua tradução de La Crise du monde moderne (1927) pela Martins de São Paulo, a leitura de Guénon no Brasil é algo de círculos muito estreitos.
Por que seria isso?
De Blois a Paris
Nascido em Blois, a 185 km de Paris, aos 15 de novembro de 1886, Guénon vem de uma família católica devota de classe média-baixa. Seu pai, Jean-Baptiste, era arquiteto. Segundo Paul Sérant (René Guénon, 1953, p. 7), pertenciam, para os padrões do vilarejo, à casta burguesa. Sempre de saúde frágil, foi durante juventude e mocidade um aluno diligente, especialmente nas matemáticas.
Muda-se para Paris na adolescência. Os detalhes biográficos da vida de Guénon nos anos 1900 são vagos. O que se sabe é que em 1906 sua saúde o impediu de prestar os exames de ingresso no ensino superior, o que abortou sua carreira universitária. Ao mesmo tempo, entrava decididamente no mundo ocultista francês parisiense.
Logrou ascensão meteórica. Em 1908, era secretário da mesa do Congresso Espiritualista e Maçônico. No ano seguinte, começa a organizar os cronogramas do grupo L'Initiation, assinando os panfletos como «R.G.S∴I∴» (supérieur inconnu, «superior desconhecido»). No mesmo ano funda La Gnose, periódico ocultista que sobreviverá até 1912 sem jamais passar dos cento e cinqüenta assinantes. Acima disso, foi amigo pessoal de Gérard Encausse, vulgo Papus, cujo livro A Ciência dos Magos é leitura obrigatória de ocultistas desde a sua publicação.
Guénon: A verdade e o ostracismo
Apesar de sua associação com o miolo ocultista de Paris, Guénon, já no início dos anos 1910, começa a marcar seu afastamento desse círculo. Isso também marca o início da sua impopularidade, que se estende até hoje, no que se chama de «esoterismo» (ao menos em sua versão popular). La Gnose vinha inicialmente com o subtítulo: «Órgão oficial da Igreja Gnóstica Universal». Já no quarto número da revista, fevereiro de 1910, o subtítulo é outro: «Revista mensal dedicada ao estudo das Ciências esotéricas».
Na edição seguinte, janeiro de 1911, a publicação traz um manifesto convenientemente intitulado «Ce que nous ne sommes pas» [Quem nós não somos]. Escreve Guénon: «Somos firmemente ligados à Tradição ortodoxa, una e imutável como a própria Verdade a é em sua mais alta expressão, somos adversários irredutíveis de toda heresia e de todo modernismo».
Por que é importante arrolar isso tudo como explicação do mistério de René Guénon?
Minha tese é que ao se afastar do meio ocultista, Guénon perdeu o grande trunfo que o ocultismo tem: sua aura subversiva. Desde a emergência da configuração atual do ocultismo contemporâneo, dada na França e na Inglaterra no final do século XIX quase simultaneamente, o grande trunfo do ocultismo sempre foi poder trazer «verdades ocultas», aquelas coisas que os órgãos oficiais, que a religião ortodoxa não quer que as pessoas saibam.
Indo pelo caminho contrário, Guénon perde tudo isso. Porém, com sua impopularidade, ele também demonstra sem deixar espaço para as dúvidas a grande verdade dos nossos tempos: as pessoas simplesmente não estão interessadas na verdade.
Qual é a grande mensagem de René Guénon?
A grande mensagem de René Guénon é que não há nada de «oculto». As religiões reveladas já fazem parte da Verdade, afirma ele, porque todas são declinações da Tradição Primordial. Portanto, inovações, variações sobre cultos antigos, popularizações das grandes tradições da humanidade são coisas indesejáveis.
É por isso que passará o resto daquela década dedicando-se a polêmicas contra os círculos ocultistas de Paris enquanto solidifica seu interesse pelas tradições do mundo. A partir de 1912, com a polêmica «Les Neo-Spiritualistes» (La Gnose, fev. 1912; depois parte d’O Erro Espírita, 1923), Guénon transitará por um lado como um porta-voz das ortodoxias (o que já faz em seu primeiro livro, Introdução Geral ao Ensino das Doutrinas Hindus, 1921) e, por outro, como um denunciador dos erros e perigos ocultistas, colaborando em revistas católicas como La France antimaçonnique e, especialmente, Regnabit.
Porém, há um elemento importante para ser considerado na mensagem de René Guénon. Por mais que ele seja um crente nas ortodoxias religiosas, há um problema na própria constituição da nossa época: o Kali Yuga.
O que é o Kali Yuga? Segundo as doutrinas hindus, as idades do mundo se dividem em quatro: Krita Yuga, Treta Yuga, Dvapara Yuga, e Kali Yuga. Cada uma é pior do que a outra, sendo o Kali Yuga a pior dessas idades — e nós estamos no finalzinho do Kali Yuga, o que pode ser considerado como a meia-noite da história.
Isso implica que mesmo a religião no nosso tempo está em estado de petição de miséria, e isso é especialmente verdadeiro no Ocidente. Para Guénon, a religião cristã no Ocidente perdeu seu lado esotérico quase completamente. O que resta de esoterismo está nuns poucos círculos e comunidades afastadas da religião dogmática (certos setores da maçonaria, os rosa-cruzes, a compagnonnage, etc.).
Assim, é preciso que o Ocidente entre em contato com as grandes tradições universais novamente. Isso só pode ser feito se nos reportarmos às tradições orientais, especialmente Islam e Hinduísmo. Posto que o Hinduísmo é quase incompreensível para um ocidental moderno, só nos resta o Islam para ser nosso amigo. Esse, aliás, foi o caminho que Guénon fez, de certa forma. Afinal, adotou o Islam, mudou-se para o Cairo e se casou com a filha de um shaykh.
René Guénon: Uma esfinge?
Se por um lado Guénon é rechaçado pelos ocultistas por rejeitar as inovações propostas pelos arautos da nova era, por outro a idéia de que o Ocidente, e especialmente o Catolicismo, precisa se dirigir em diálogo com o mundo islâmico não cai bem de forma alguma, aos ouvidos conservadores.
O promotor no processo contra Guénon é Olavo de Carvalho. Em «As garras da Esfinge: René Guénon e a islamização do Ocidente» (Verbum, nos. 1-2, 2016), texto já clássico, apesar de relativamente recente, Olavo traz uma série de questionamentos sobre os motivos de Guénon ter avançado um conceito aparentemente tão esdrúxulo como o de Tradição Primordial. Olavo:
Qual a razão pela qual Guénon teria escolhido enquadrar à força todas as tradições numa dupla de conceitos que não se aplicava apropriadamente a nenhuma delas exceto o islamismo em particular? Por que esse homem, tão criterioso em tudo o mais, se permitiu tamanha arbitrariedade…? Quase com certeza teve, para fazê-lo, motivos que, ao menos naquele momento, não podiam ser discutidos abertamente.
Não é preciso lembrar ao leitor o fato que Olavo, dos anos 1970 até meados da década de 1990, foi um dos principais expositores de Guénon no Brasil. Dedicou-lhe até um panegírico, «René Guénon: O mestre da Tradição no reino da deturpação» (Planeta, no. 107, ago. 1981), em que chama o mestre de «simples e rijo como um diamante» e afasta dele qualquer acusação de que pretendia formular a doutrina dele (p. 14).
Por causa das «Garras da Esfinge» e de uma série de outras exposições sobre Guénon como alguém perigosíssimo, de objetivos escusos, de lançar enigmas nos seus textos que, se não forem desvendados, fazem o leitor cair numa armadilha difícil de sair depois, instalou-se no Brasil uma espécie de medo paranóico do contato com a literatura guénoniana.
Logo aqui, onde os livros de S. Cipriano da Capa Preta são vendidos nos fundos das livrarias, em segredo.
Minha opinião é que nada disso é o caso. A explicação do porquê é muito mais demorada do que posso passar aqui na newsletter…
É por isso que, nos dias 3, 4, e 5 de abril eu farei uma sequência de lives para falar melhor sobre aquele que foi O primeiro guru, da forma que os conhecemos hoje.
Anote na sua agenda, calendário ou lembrete do celular.
Serão três lives em que tratarei de explicar, para aqueles que não o conhecem e para quem já tem familiaridade, René Guénon e sua influência.
Caso você ainda não me siga no Instagram, recomendo que o faça, pois as lives acontecerão por lá!
Baita clickbait, Victor! Já pode virar jornalista! QUAQUAQUA
zoação a parte, você costuma deixar as lives do Instagram salvas, no ar, ou seja lá qual for o termo certo?